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Terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Levantamento mostra que só 293 estudantes nas piores condições socioeconômicas possíveis obtiveram notas semelhantes a de alunos de escolas de elite no maior exame do País.

Texto: Luiz Fernando Toledo; Mílibi Arruda e Pedro Prata, especiais para o Estado / Infografia: Bruno Ponceano / Com base em estudo de Leonardo Sales - Fotos: Estadão 

O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é a principal porta de entrada para o ensino superior do País. Todos os anos, milhões de candidatos participam da prova. Mas as condições de competição entre eles não são exatamente iguais. Antes de começarmos esta história, vamos explicar algumas coisas.  Primeiro, já sabemos que quanto melhor a condição socioeconômica do estudante, maior sua nota no Enem tende a ser

Neste gráfico, com base nas notas de quem fez a prova em 2017, cada nova “onda” mostra um grupo de estudantes em uma condição socioeconômica melhor que a anterior

Assim, vemos que elas estão sempre se deslocando para a direita  em direção às melhores notas da prova. Para entender por que este histograma é importante, vamos analisá-lo por partes…

Aqui temos a “onda” que representa todos os estudantes que fizeram a prova em 2017 O Enem traz um imenso desafio para todos. São 180 questões objetivas (de Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza e Ciências Humanas), divididas em dois domingos, além de uma redação. Mas os obstáculos a serem superados para se dar bem na prova são muito diferentes para cada aluno

Condições como renda familiar do aluno, o tipo de escola – pública ou privada – em que estudou e até se ele tem ou não internet em casa estão, quase sempre, ligadas a ter um bom ou mau desempenho. Isto não significa que viver na pobreza ou na falta de estrutura é determinante. Mas que esses fatores – boa escola e boas condições familiares – são muito relevantes para o sucesso dos alunos. Este contraste é evidente quando incluímos os candidatos com as melhores condições socioeconômicas  possíveis.

Sim, já sabíamos que este grupo está concentrado em notas mais altas,mas, para comparar melhor, destacamos os estudantes de cada grupo que tiveram pontuação entre as 5% melhores notas de toda a prova…1 a cada 4 alunos do grupo com melhores condições socioeconômicas está nos 5% melhores. 1 a cada 600 alunos do grupo com piores condições socioeconômicas está nos 5% melhores. Isto significa que alguns alunos, ainda que em condições socioeconômicas ruins e escolas sem a melhor infraestrutura, superaram barreiras e atingiram notas típicas de colégios de elite. Mas… Quantos?

Descobrimos um pequeno grupo de 293 alunos que estudaram em situações extremamente desfavoráveis e contrariaram estatísticas. Este resultado pode ser suficiente para o ingresso em diversos cursos em universidades públicas. A nota mais alta obtida por um aluno deste grupo foi de 737,5 – nota semelhante a de alunos dos colégios privados mais caros do País. Dentre os 293 estudantes, 63% deles são pardos, percentual similar ao total de alunos, também pardos, com piores condições (65%)

A situação se inverte quando são analisados os estudantes de melhor performance. Os pardos representam 19% contra 72% dos brancos.Já os pretos, tanto no recorte dos 293 alunos, como também no grupo de piores condições, estatisticamente apresentam os mesmos valores com 13,6% e 13,9%, respectivamente.

Os dados mostram ainda que há uma concentração desses alunos no Estado do Ceará. Mais da metade deles – 154 – cursaram o ensino médio em escolas públicas do Estado.Esse número reflete uma série de programas que tornaram o ensino público cearense uma referência nacional, com medidas que incluem fazer as melhores escolas apoiarem aquelas que apresentam pior desempenho. Ao lado de São Paulo e Rondônia, o Ceará teve a 4ª melhor nota do ensino médio em 2017 no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principal medidor oficial de ensino no País.

Em seguida, aparece o Pará, com 37 alunos, Minas, com 25, e Bahia, com 16

Por meio das notas e outras características, como idade, sexo e escola, apontadas nos microdados do Enem, a reportagem do Estado encontrou e entrevistou alguns deles.

Caixa de supermercado durante o dia, Biomedicina à noite

Sarah Santos, de 19 anos de idade, sempre foi incentivada pela mãe a estudar. Como não teve a chance de cursar o ensino superior, a mulher projetava suas expectativas na filha e lhe ensinava a importância do conhecimento, diz Sarah. “A princípio, eu me esforçava para orgulhar minha mãe. Agora, é para realizar meus sonhos”.

Sua principal meta era ingressar na Universidade Federal do Ceará (UFC). Dessa forma, separava cerca de duas horas para estudar por meio de apostilas preparatórias para o Enem oferecidas pela prefeitura de Fortaleza. “Como eu estudava o dia todo num curso técnico, era bem desgastante. Mas a gente tirava o tempinho que tinha para revisar. É preciso se esforçar um pouco”.

“A escola com certeza tem um papel muito importante no que eu conquistei”, defende Sarah, que explica que a equipe pedagógica da Escola Estadual de Educação Profissional Maria José Medeiros traçou um plano para intensificar os bons resultados de seus alunos no Enem. Entre as medidas tomadas, está a separação dos jovens em níveis de desempenho e a organização de aulões aos finais de semana para revisão dos conteúdos.

“Eu acho importante estudar em todas as idades porque o aprender é constante. A gente precisa alimentar sempre o conhecimento”, diz Sarah. Ela fez aulas de Engenharia Ambiental durante um semestre na UFC. Contudo, não se identificou com o curso e o fato das aulas serem em tempo integral a impossibilitava de trabalhar.

Assim, acabou desistindo e entrou num curso de Biomedicina de uma faculdade particular por meio do Programa Universidade para Todos(Prouni). “Eu trabalho durante o dia como caixa de supermercado e estudo à noite. Estou me descobrindo nesse curso”.

Sem computador, aprovada em Odontologia estudava na casa da prima

Belo Horizonte se tornou a nova casa de Sabrina Gomes, de 19 anos de idade, depois que obteve média geral 661,28 no Enem. Com essa nota, conseguiu se matricular no curso de Odontologia de uma universidade particular na capital mineira por meio do Programa Universidade para Todos (Prouni).

Não é a primeira vez que a jovem se sente fora do lar, porém. Mesmo quando ainda era aluna da Escola Estadual São João Batista, em Itamarandiba, interior de Minas Gerais onde morava com a mãe e o irmão mais novo, ela passava dias seguidos longe de casa. Isso porque Sabrina não tinha computador e, para estudar, tinha que usar a máquina de uma prima.

“Não estar em casa é um pouco difícil”, diz a estudante ao explicar que, como fazia um curso técnico à noite e a casa da familiar era perto da escola, acabava passando mais tempo lá do que com a mãe. Só a reencontrava aos finais de semana e, ocasionalmente, durante os dias úteis. “Minha mãe às vezes reclamava por eu ficar mais lá do que em casa”.

Ela conta que sempre quis ingressar em um curso superior pois queria ter melhores condições financeiras do que os pais para poder ajudá-los. Com esse objetivo em mente, consultava os livros da biblioteca pública municipal e assistia a vídeos na internet para revisar o conteúdo do exame. “Acredito que quem gosta de aprender e quer ter mais oportunidades, consegue tirar uma nota boa”, defende a jovem. “Não adianta a pressão da família se a pessoa não quer estudar.” Ela ainda nega que o fato de não ter acesso à internet em casa tenha lhe prejudicado e acredita, na verdade, que isso foi bom, uma vez que lhe permitiu se concentrar mais nos estudos. “Do contrário, eu acabaria dispersa nas redes sociais”.

Além da bolsa de estudos, Sabrina atualmente recebe um auxílio permanência de R$ 400 do Ministério da Educação para cobrir as despesas com os estudos. “No caso do curso de Odontologia, é muito difícil trabalhar enquanto se está estudando, então tenho que viver com esse dinheiro.” Ela mora na casa de conhecidos com os quais divide as despesas e conta com um dinheiro extra que os pais mandam quando podem. “Assim, a gente vai tentando contornar a situação”.

Aprovado em Medicina não conseguiu fazer o curso por problemas financeiros

Durante os três anos de ensino médio, Alisson Lopes, de 19 anos, teve seus dias completamente tomados pelo estudo. “Como fiz uma escola profissionalizante, em tempo integral, quase não tinha tempo livre”. No terceiro ano, passou a estagiar no período da tarde e a frequentar aulas também à noite. Entre uma atividade e outra, passava cerca de quatro horas por dia se locomovendo – muito mais tempo do que sobrava no fim do dia.

Hoje, Alisson cursa Odontologia na Universidade Federal do Ceará. A vaga foi conquistada graças aos 708 pontos obtidos na média geral do Enem - um salto de quase cem pontos em relação à nota atingida no ano anterior. Ele atribui o bom resultado não só à carga extenuante de estudos diários, mas principalmente ao dia a dia na sala de aula. “Tive a sorte de ter ótimos professores e ambiente escolar. A rotina maluca do período integral também acabou ajudando pela questão da resistência física e preparo psicológico, importantes pra fazer dois dias de prova”, conta.

A escolha pela área de saúde não foi por acaso. Desde o colégio, o estudante tinha grande afinidade com a área de biológicas, e chegou a dar monitoria para os colegas no ensino médio. A opção por odontologia, no entanto, veio depois. “Cheguei a ser aprovado em Medicina em outros estados, mas não pude levar adiante por questões financeiras”, conta Alisson que vive com os pais e três irmãos. “Hoje, mesmo estudando aqui em Fortaleza, a gente tem muitos gastos. Ir para outro estado seria muito fora da minha realidade”.

No interior do Ceará, dia e noite dedicados aos livros

Assim como parte dos estudantes do distrito de Araticum, em Ubajara (CE), a 300 km de Fortaleza e com 32 mil habitantes, Débora Ferreira tentava uma vaga na Universidade Federal do Ceará em Sobral, a 80 km de distância. No ano passado, quando prestou o vestibular, a única renda de sua família era o salário do pai, que trabalhava como auxiliar de serviços gerais. Dividida com toda a família, a remuneração mal chegava a R$ 300.

Débora, de 18 anos, estudou a vida inteira na rede pública. Ela relata que quando estava no ensino médio, sua escola não dispunha das melhores condições. “Apesar de ter condições estruturais não muito boas, meu colégio tinha professores excelentes, assim como a direção”, conta a estudante. Em muitas ocasiões, no entanto, teve que estudar por conta própria devido à falta de estrutura. “Existem na matriz curricular do ensino regular público algumas matérias que são cobradas no Enem e que a escola não aplica tanto”.

Quando estava no terceiro ano do ensino médio, Débora conseguiu uma vaga no cursinho pré-vestibular oferecido gratuitamente pela própria UFC, em Sobral. A partir de então, deu início a uma intensa rotina de estudos. “Eu acordava às 6h00 para a escola, onde passava o período da manhã. Quando chegava em casa, só tinha tempo pra almoçar e tomar banho antes de voltar a a estudar. Depois eu saía novamente às 17h00 pra fazer o cursinho e só voltava pra casa por volta das 23h30”, relata.

Graças ao esforço, a estudante conseguiu 709 pontos na média geral do Enem – suas maiores notas foram em Matemática e na Redação, respectivamente 800 e 860 pontos. “Eu não esperava uma nota tão alta. Quando fiz o exame nos outros anos, minha média não chegou nem a 600”. Ela conta que além de estudar sobre um rígido cronograma, foi necessário preparo psicológico. “O Enem é uma prova de resistência, que mexe muito com a cabeça da gente - tive que me preparar pra isso também”.

Motivada pela situação de um primo, a Débora decidiu que entraria para a área de saúde. “Eu tenho um primo, de 11 anos, que faz tratamento de leucemia no Hospital Peter Pan, um instituto filantrópico que trata o câncer infantil em Fortaleza. Quando fui visitá-lo e vi toda a estrutura e pessoal empenhado em ajudar as crianças, me deu vontade de fazer aquilo também”.

Pelo Enem, Débora tentou Medicina na UFC, e prestou também o vestibular para o curso de Enfermagem da Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA), onde estuda hoje. “Infelizmente, com a minha nota do ano passado não consegui entrar na Federal, mas o curso que estou fazendo hoje é também muito gratificante”. Neste ano, a estudante continuou a se aplicar para tentar uma vaga em Medicina novamente pelo Enem.

 

Análise

Nota não depende apenas de esforço do aluno

Ocimar Alavarse- Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP)

A análise de desempenho dos candidatos do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) indica um problema ignorado pelos adeptos apenas da meritocracia. Os resultados dos testes – medida do quanto cada aluno domina dos conteúdos que são cobrados pelo exame – estão associados a fatores que não representam somente o esforço de cada estudante para obter esse domínio mediante a dedicação aos estudos.

As condições socioeconômicas do aluno interferem, objetiva e subjetivamente, na realização desse esforço e, assim, se manifestam no resultado. Pesquisadores investigam as melhores maneiras de medir esses efeitos, sabendo-se que, além da renda e de outras características familiares, até a escolaridade da mãe é fator de influência no resultado.

O cálculo indica as chances que membros de cada estrato social têm para obter notas no teste. Não se trata de “condenar” ou demarcar uma situação como impossível de ser superada, mas de estabelecer os condicionamentos entre os estratos e as notas no exame.

Estudos desse tipo justificam a adoção de ações afirmativas para ingresso no ensino superior. Existe, com isso, o reconhecimento de que a concorrência universal pelas maiores notas – que expressariam os maiores domínios do estudo, como funcionou durante décadas o tradicional vestibular – oculta condições de origem que a grande maioria dos alunos não pode contornar só por suas vontades ou desejos.

Como foi feito 

Em 2017, cerca de 4,6 milhões de pessoas fizeram o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), principal meio de acesso ao ensino superior no Brasil. No levantamento feito pelo cientista de dados Leonardo Sales, em parceria com o Estado, foram consideradas somente as notas de um grupo menor de estudantes, de 1,3 milhão, que estavam disponíveis publicamente, com alunos identificados como de ensino médio regular (ficam fora alunos identificados como treineiros e aqueles com dados inconsistentes nos questionários). Os microdados de 2018 só devem ser divulgados em meados de 2019.

E como identificar um aluno em situação de alta vulnerabilidade social? Foi feito um levantamento estatístico que mostrou os dez fatores que mais se relacionaram negativamente à nota dos estudantes em 2017. Entre eles, estão estudar todo o ensino médio em escola pública, nunca ter estudado em escola privada, não ter acesso à internet e ter renda per capita familiar menor do que R$ 312 (um terço do salário mínimo da época). Veja a lista completa:

A partir desse critério, foi feita uma separação de grupos de alunos, de acordo com cada situação de vulnerabilidade. Cada problema conta um ponto. O grupo mais pobre, com dez pontos, tem um total de 176,9 mil alunos. O grupo com as melhores condições é o exato oposto, com zero pontos, e possui 65,4 mil estudantes. Apesar de não ter sido um filtro explícito, o grupo com as melhores condições socioeconômicas tem renda familiar per capita média de R$ 1.992 (2,1 salários mínimos).

Para categorizar determinado grupo como classe média, foi utilizado o critério da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep), criado em 2015 e atualizado em 2016 com dados da PNAD 2014.

Isso não significa que cada um desses fatores seja o motivo específico pelo qual o aluno foi bem, isto é, que seja a causa do desempenho. No caso de variáveis relacionadas aos bens que a família do candidato tem em casa, por exemplo, essas informações estão diretamente ligados à renda. Também não significa que o preparo do aluno não faça diferença, mas que o perfil dos que têm notas semelhantes se repete.

Desde 2014, o próprio Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep), órgão responsável pelo Enem, criou o Indicador de Nível Socioeconômico (Inse), para contextualizar os resultados de escolas em avaliações oficiais. Com metodologia própria, que também considera fatores como renda familiar, posse de bens e escolaridade dos pais, o índice separa os estudantes em sete faixas socioeconômicas.

Conforme o Inep informou à época, a ideia é permitir à sociedade fazer comparações entre escolas dentro de um mesmo contexto social. Não faz sentido, por exemplo, comparar a nota de uma escola pública de um bairro pobre com um colégio privado em área rica, uma vez que esses alunos saem de pontos de partida bastante diferentes. Contextualizações do tipo, segundo especialistas, também são úteis para determinar o quanto a escola contribuiu no desempenho do aluno, “descontando” o ponto de partida socioeconômico do estudante.

 

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