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Quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Entrevista com Demetrio Guadagnin, professor do Departamento de Ecologia da UFRGS e pesquisador na área de Conservação e Manejo de Vida Silvestre.

Por: Daiani Cerezer

1 - A Revolução 4.0 se caracteriza pelo avanço sem precedentes do uso de novas tecnologias em todas as áreas da atividade humana, notadamente a produção industrial. Na opinião do senhor, quais são os impactos disso no meio ambiente?

A Ecologia oferece uma crítica radical à tecnologia. Endosso a visão do filósofo Jean-Pierre Dupuy de que a tecnologia é um fetiche. Ao acreditarmos que a tecnologia é capaz de resolver qualquer problema, afastamo-nos de outras alternativas. A tecnologia, ao mesmo tempo em que permite a melhora da qualidade de vida de muitas pessoas, aprofunda problemas ambientais e sociais. O mesmo motor à combustão, que nos permite mobilidade, também é o que aquece o planeta. A tecnologia da informação, que conecta pessoas e mercados, é também uma economia da masturbação - isola pessoas numa relação mediada pelas máquinas, enfraquece os laços diretos e a produção autônoma de valores, substituindo-os pela produção heterônoma, fabricada. A matrix é a alegoria deste mundo. Não se trata, portanto, de questionar a tecnologia em si, mas a profunda mudança na forma de produção de valores que ela engendra.

Quanto aos novos modos de produção industrial, não existem novidades importantes do ponto de vista ecológico. Para o meio ambiente, a contribuição principal da Ecologia é introduzir duas questões - a primeira é a questão da origem e destino da produção material. Não importa tanto o que você consome, mas como foi produzido e qual será o destino do que consumimos. Qualquer produto industrial tem uma origem material na produção primária - agropecuária e mineração, e tem como destino o descarte. Então, é o que faz parte da cadeia produtiva, mas que está antes e depois da indústria, que importa mais. A Revolução 4.0 não é muito revolucionária nestes aspectos. A segunda questão é a do quanto consumimos, do consumismo.

 

2 – O Sr. acredita que as novas tecnologias irão modificar a relação do ser humano com a natureza?

Certamente, não. Conforme comentei anteriormente, trata-se de um fetiche. Até aqui todos os ganhos de eficiência econômica e material nos processos produtivos foram, de fato, traduzidos em produtos mais baratos e descartáveis e, portanto, em reforço do consumismo. Mas a pergunta envolve um segundo aspecto - não precisamos nos reconciliar com a natureza? Somos integralmente parte dela. Evoluímos em conjunto. O que está em discussão é se seremos capazes de ampliar nossa própria permanência no planeta, ou da permanência do nosso processo civilizatório, dadas as condições materiais a que a humanidade impõe a si mesma como condição de existência e reprodução. Haverá natureza depois da sociedade industrial, mas não, necessariamente, a que nos agrada hoje.

 

3 - O consumismo é, hoje, um dos principais inimigos na luta pela preservação dos recursos naturais. Como o Sr. avalia que será consumidor neste novo mundo? A tecnologia irá aumentar ou reduzir as desigualdades em nosso planeta?

A desigualdade não é um problema tecnológico, mas de poder, assim como os problemas ambientais. Poucos problemas são tecnológicos. Por exemplo, o carro elétrico não será uma solução para a crise climática ou do petróleo, porque continua representando um modo perdulário de usar os recursos do planeta - individual, grande consumidor de recursos e energia no seu processo de fabricação e uso, mantém a mesma lógica de enorme apropriação de espaços para infraestrutura de rodagem e estacionamento, terminará em resíduo e descarte, e, mais importante, segue sendo um bem distintivo, com maior valor de troca do que de uso. Não questiona o consumismo. Não precisamos de carros, precisamos de mobilidade, repensar as cidades, a urbanização. Isso vale para a medicina baseada na cura com produtos e processos de alta tecnologia em oposição à saúde produzida de forma autônoma, como resultado de um modo de vida saudável. Vale para todas as dimensões da vida.

“Não precisamos de carros, precisamos de mobilidade, repensar as cidades, a urbanização.”

Quanto ao consumismo, é a luta de todos contra todos por prestígio social. Um modelo econômico e social baseado na violência, na competição, na produção de bens para distinção social, jamais vai produzir igualdade e repensar o consumismo. Entre ecologistas prevalece a ideia de que o necessário decrescimento econômico acontecerá pelo pior caminho, o da escassez e aumento de preços. Será muito difícil evitar um reforço da exclusão social nesse quadro. Mas a exclusão social é, antes de tudo, o resultado da luta por distinção social. O que a tecnologia pode oferecer neste campo? Nada. A tecnologia não questiona a guerra de todos contra todos por prestígio. Dado o controle do grande capital sobre a produção tecnológica, cada vez mais complexa, tende de fato a reforçá-la.

“Entre ecologistas prevalece a ideia de que o necessário decrescimento econômico acontecerá pelo pior caminho, o da escassez e aumento de preços.”

A indústria precisa encontrar consumidores para seus produtos. Sua principal arma é a luta por prestígio, mote da propaganda. Mas existe uma adicional - a obsolescência programada. Vivemos a era do descartável, do supérfluo, do volúvel. Sobre este segundo fator parece haver algum avanço, não muito nítido. Mas este é apenas um fator coadjuvante.

Quanto aos consumidores, pode haver respostas muito variadas. Se existem consumidores "verdes" a indústria vai procurar atendê-los, mas, em essência, seguem sendo consumidores lutando por prestígio. Não vejo sinais de consumidores buscando bens mais duráveis ou produzidos com menor consumo de energia e materiais. Existe um aumento do número de consumidores preocupados com a valorização de produtos locais, respeito a animais e trabalhadores, que são preocupações importantes, mas não as mais importantes do ponto de vista ambiental. Para a maior parte do planeta, de qualquer modo, a relação entre valor de uso e valor de troca segue sendo a mais importante, senão a única.

“Não vejo sinais de consumidores buscando bens mais duráveis ou produzidos com menor consumo de energia e materiais. Existe um aumento do número de consumidores preocupados com a valorização de produtos locais, respeito a animais e trabalhadores, que são preocupações importantes, mas não as mais importantes do ponto de vista ambiental.”

Um aspecto interessante da nossa era é que, dada a crescente escassez de recursos primários pode não haver saída para o capitalismo e a produção industrial, seja ela qual for, senão a exclusão social - concentrar os poucos recursos disponíveis para atender aos consumidores capazes de pagar um melhor preço. A própria reprodução do modo de produção industrial precisa se adaptar a este novo constrangimento ambiental. A Revolução 4.0 não reconhece a necessidade de reprodução da natureza, portanto, deve ampliar a exclusão.

 

4 - O senhor pode citar algum exemplo de país que busca equilibrar os benefícios da Revolução 4.0 com os impactos que a produção industrial causa no meio ambiente?

A maioria dos países do primeiro mundo, especialmente Alemanha e os nórdicos. Nos EUA, há sinais variados, conforme o estado. Na China, Canadá, Austrália e em outros países desenvolvidos, os sinais são contraditórios. A tendência dos últimos 40 anos é transferir as fábricas fedorentas para o mundo subdesenvolvido e ficar com a produção de bens imateriais - turismo, conhecimento, cultura, patentes, serviços digitais. Mas isso esconde uma redistribuição internacional do trabalho. Ao Brasil cabe o papel de exportador de alimentos, minérios e, indiretamente, da enorme quantidade de água necessária na sua produção. Nosso país se concentra nas três indústrias que mais consomem energia, água e solos - papel, cimento e minérios. No mesmo caminho seguem Argentina, Chile, África do Sul e outros latinos e africanos. EUA, Canadá e Austrália têm grandes reservas minerais e vão ampliar sua exploração, daí a contradição. A China investe pesado em energias renováveis e quer reduzir o consumo de carvão, mas precisa muita energia para sustentar o enorme parque industrial. Entretanto, a indústria é a essência da sociedade atual e a transferência das fábricas para o mundo subdesenvolvido tem consequências no mercado de trabalho do mundo desenvolvido e os desafios começam a se ampliar, vide os fenômenos eleitorais recentes no mundo desenvolvido.

“Ao Brasil cabe o papel de exportador de alimentos, minérios e, indiretamente, da enorme quantidade de água necessária na sua produção. Nosso país se concentra nas três indústrias que mais consomem energia, água e solos - papel, cimento e minérios.”

 

5 - Foi a partir do relatório “Nosso Futuro Comum”, divulgado pela ex-primeira Ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, que a expressão “Desenvolvimento Sustentável” ganhou notoriedade. Este documento foi base das discussões da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a ECO 92 ou RIO 92. O relatório propõe o conceito de que Desenvolvimento Sustentável seria a capacidade das atuais gerações atenderem as suas necessidades sem comprometer o atendimento das necessidades das gerações futuras. O Sr. acha que a humanidade evoluiu neste sentido? O que falta para a sociedade global, especialmente nos países ricos, entenderem que a Terra é a única casa que conhecemos e que precisa ser preservada?

Penso que até o momento temos mais retórica que atitudes. Até aqui a sociedade global tem procurado investir apenas em propostas que não afetam, dramaticamente, o status quo da divisão internacional do trabalho e dos modos de vida. São políticas setoriais, muitas vezes contraditórias - enquanto um setor de governo se preocupa com eficiência energética e mudança climática, outro investe em expansão do consumo. Não é suficiente nem consistente com o conceito. No centro do desenvolvimento sustentável está o bem estar comum. Não se pode falar em sustentabilidade sem discutir pobreza, exclusão, racismo, refugiados etc. Esta percepção faltava nas interpretações iniciais. Pensando em questões puramente ambientais temos avanços nos temas relacionados à conservação da biodiversidade, energia e água, mas não suficientes para reverter tendências e, frequentemente, através de soluções de mercado que aprofundam disparidades dentro e entre países. A depleção da camada de ozônio é a única tendência global efetivamente em reversão, um bom exemplo de problema com origem e solução na tecnologia. A questão mais importante, a mudança climática, não se resolve sem mudanças profundas e caminhamos a passos muito mais lentos do que o necessário. O Brasil nunca se preocupou com seriedade em sustentabilidade e, nos dois últimos anos, a ruptura democrática e jurídica nos colocou definitivamente na contramão da sustentabilidade. Estamos sendo atropelados por uma avalanche de retrocessos em políticas ambientais e sociais sem precedentes históricos ou geográficos, baseados no pressuposto oposto ao da sustentabilidade, de que o crescimento do mercado regulado pela mão invisível da economia é a única preocupação necessária. O Brasil é um país muito vulnerável à mudança climática e não tem nenhuma política consistente sobre o tema, seja de prevenção ou adaptação. Estamos revendo a demarcação de áreas protegidas, a regulação do desmatamento, as políticas de urbanização e tantas outras, enquanto os recursos para pesquisa, educação, planejamento e fiscalização estão desaparecendo.

 

“No centro do desenvolvimento sustentável está o bem estar comum. Não se pode falar em sustentabilidade sem discutir pobreza, exclusão, racismo, refugiados etc.”

“Estamos sendo atropelados por uma avalanche de retrocessos em políticas ambientais e sociais sem precedentes históricos ou geográficos, baseados no pressuposto oposto ao da sustentabilidade, de que o crescimento do mercado regulado pela mão invisível da economia é a única preocupação necessária.”

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