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Sexta-feira, 29 de junho de 2018

Entrevista com Ana Tercia Sanches, professora, pesquisadora e diretora da Federação dos Bancários do Estado de São Paulo 

A professora e pesquisadora Ana Tercia Sanches é diretora da Federação dos Bancários do Estado de São Paulo (Fetec). Dedica-se ao estudo das mudanças ocorridas no setor bancário, um dos primeiros a ser afetado pelo uso de novas tecnologias. Possui doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo e especialização em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp. Atualmente, dedica-se ao estudo dos significados da 4ª  Revolução Industrial.

PORTAL ADVERSO - Como a reestruturação produtiva do sistema financeiro afetou o trabalho cotidiano dos bancários?

Ana Tercia Sanches - Os reflexos das mudanças que aconteceram no ambiente macro econômico das empresas, como as fusões e as privatizações, as terceirizações e as mudanças decorrentes das inovações tecnológicas, reconfiguraram a interação entre trabalhadores bancários, terceirizados e clientes. Assim, o local de trabalho sofreu profundas alterações no seu modo de ofertar produtos e serviços. As exigências derivadas de um capitalismo menos regulado e, por isso, altamente atrelado à lógica de curto prazo dos mercados financeiros implicaram, diretamente, em maiores exigências de produtividade e flexibilidade no local de trabalho.

PORTAL ADVERSO - O que muda na cultura organizacional dos bancários?

Ana Tercia - A cultura organizacional funciona como o cimento que dá a liga e molda a ação dos trabalhadores dentro das empresas, sobretudo aquelas que têm atuação internacional e negociam suas ações nas bolsas de valores. Estas empresas, pautadas pela lógica do curto prazo dos mercados financeiros, impõem um ritmo de produtividade crescente, em tempos cada vez menores. Variáveis como controles mais refinados, programas de metas e avaliação de performance formatam a ação dos trabalhadores no cotidiano. O principal viés do paradigma flexível no universo bancário, a lógica do curto prazo, se expressa na pressão direta exercida sobre os trabalhadores quando submetidos a programas de gestão por resultados, também designados de programas de metas, e a processos de avaliação contínuos, que, invariavelmente, refletem de forma negativa na saúde mental e física dos trabalhadores.

PORTAL ADVERSO - No setor financeiro, a automação vem promovendo uma drástica redução dos postos de trabalho. Como essa tendência irá impactar o futuro do trabalho?

Ana Tercia - O setor financeiro é um dos mais lucrativos no mundo inteiro. Suas margens de lucro atingem dois dígitos, enquanto as economias nacionais apresentam crescimento de um dígito. É visível o descompasso que envolve uma equação social nada fácil, pois, economicamente, a concentração de renda atende interesses de pequenos grupos de pessoas, enquanto aumenta a pobreza e a miséria para uma maioria. A tecnologia, em qualquer tempo histórico, foi utilizada para alavancar produtividade, desprezando o trabalho humano. Assim, o desemprego de caráter tecnológico é algo que tem marcado a história do trabalho no capitalismo. A depender do momento, sabe-se que, nos diversos países, novas atividades econômicas podem se expandir, se diversificar, aplacando os impactos negativos das inovações tecnológicas. Contudo, o cenário aponta para um acirramento dos níveis de desemprego, haja visto o caráter mais veloz e poupador de força de trabalho que as novas tecnologias digitais possibilitam diante de um quadro de baixo desenvolvimento econômico e desigualdades brutais entre nações inteiras. Tanto é assim que há uma preocupação latente, já expressa pelos representantes do segmento das TIC’s e demais especialistas, com o caráter desintegrador, potencialmente vinculado aos usos tecnológicos mais avançados e poupadores de força de trabalho, quando, então, a renda e a integração social não contarão mais com o emprego estável, formal e de tempo integral. Anuncia-se, deste modo, a escassez de empregos ou mesmo de trabalho, enquanto, paralelamente, crescem os trabalhos por tarefa, ocasionais (intermitentes), terceirizados, temporários e altamente fragilizados do ponto de vista dos direitos e garantias sociais a eles vinculados.

"A tecnologia, em qualquer tempo histórico, foi utilizada para alavancar produtividade, desprezando o trabalho humano. Assim, o desemprego de caráter tecnológico é algo que tem marcado a história do trabalho no capitalismo."

PORTAL ADVERSO - O movimento sindical no Brasil está preparado para atuar na proteção dos direitos dos trabalhadores neste novo cenário?

Ana Tercia - Aqueles que conhecem bem sua base de representação e o processo de trabalho no qual estão inseridos têm condições de defender os interesses dos trabalhadores e, também, dos clientes e usuários de produtos e serviços que circulam. A questão central, que se coloca como um obstáculo, é a falta de diálogo e abertura para discutir as políticas de inovação tecnológica adotadas pelas empresas, que, numa atitude arrogante e autoritária, propagam apenas as possíveis vantagens e facilidades associadas às mudanças e desprezam os seus impactos negativos. Contudo, faz-se forçoso lembrar que não apenas os trabalhadores, mas clientes e usuários, sobretudo com menor renda, escolaridade ou por motivos geracionais, podem também enfrentar dificuldades. Deste modo, resta aos sindicatos organizar a contra pauta, ou seja, não se trata de ser contra a tecnologia em si, ou ser um tipo “neoludista”, mas de exigir que o processo seja dialogado com todos os agentes, verificando a melhor forma de transitar entre as mudanças que envolvem aspectos culturais, econômicos, ambientais e políticos. Enfim, fazer com que a sociedade se aproprie dos ganhos tecnológicos mais plenamente e que não sejam desprezados os impactos negativos que tais mudanças carregam; só assim será possível controlar seus efeitos indesejáveis e não tratá-los apenas como inevitáveis.

PORTAL ADVERSO - Como os trabalhadores poderão absorver as transformações causadas pelas novas tecnologias?

Ana Tercia - Dentro das empresas, os trabalhadores têm pouca ou nenhuma ingerência sobre o processo produtivo e, também, sobre as decisões que envolvem as inovações de caráter tecnológico. Os sindicatos terão mais capacidade de lidar com estas mudanças se estiverem sintonizados com os movimentos de transformação, antes mesmo de serem implementados na prática. Será necessário antecipar e exigir alternativas ao desemprego tecnológico. Então, por exemplo, se haverá a introdução de um software que processa os dados e as informações antes realizadas por um grupo de trabalhadores, deve se exigir informações sobre quantas pessoas estão envolvidas nesta mudança, para onde serão remanejadas e qual o treinamento que lhes será ofertado para se adaptarem às novas demandas, inclusive se capacitando e se atualizando para atuar com aquilo que deriva das inovações tecnológicas. Se é verdade que ocupações podem sumir do dia para a noite, então será preciso propor um período de transição, de médio e longo prazo, para minimizar os impactos sociais que medidas de curto prazo podem gerar. Outro ponto fundamental é verificar os impactos que a implantação de uma nova tecnologia pode trazer à saúde. Esse risco deve ser monitorado e controlado pelos trabalhadores. Afinal, os empregadores têm amplo controle até sobre os minutos da jornada de um funcionário, e não se pode desconsiderar que o trabalho, cada vez mais feito sob plataformas digitais, intensifica-se, porque se faz mais em menos tempo.

"Se é verdade que ocupações podem sumir do dia para a noite, então será preciso propor um período de transição, de médio e longo prazo, para minimizar os impactos sociais que medidas de curto prazo podem gerar." 

PORTAL ADVERSO - O assédio moral, entendido como uma estratégia das empresas para aumentar a produtividade, poderá crescer neste ambiente de relações de trabalho mais precarizadas?

Ana Tercia - A prática do assédio moral tem um terreno fértil para se multiplicar. As reestruturações produtivas colocam, em primeiro plano, a redução de custos, negligenciando muitas vezes a dinâmica do trabalho e, por consequência, prejudicando diretamente os envolvidos. Quando refletimos sobre o tema do assédio moral no ambiente das empresas, precisamos ter claro que este não é simplesmente o problema de um gestor ou gestora “despreparado”. O problema é institucional. Tem a ver com o funcionamento da empresa, de como se distribuem os recursos humanos e as condições para que o trabalho seja executado. Muitas vezes, a cobrança por metas acaba se revestindo de pressões desmedidas, de cobranças intimidatórias e ameaçadoras, de algo que não pode se realizar no plano real, porque é impossível cumpri-las. As condições que os trabalhadores têm para exercer suas funções vão desde equipamentos, sistemas e outros insumos adequados, mas, também, envolve o número insuficiente de pessoas para realizar determinadas tarefas extenuantes, além das condições do mercado. Os assediadores, neste contexto, ainda que devam ser responsabilizados, também são parte deste processo desumanizador, que os programas de gestão e metas impõe como algo natural.

PORTAL ADVERSO - O que está acontecendo com os bancários também ocorre em outras categorias?

Ana Tercia - Esse processo, que envolve as chamadas reestruturações produtivas e suas consequências, acontece em todos os setores da economia. O que une os empresários e mesmo governos, que passam a adotar estratégias de mercado em empresas de capital misto ou no serviço público, é uma orientação econômica, política e social, que gira em torno do que se denomina neoliberalismo. As consultorias internacionais têm um papel importante na disseminação de ideias que jogam peso no individualismo, na meritocracia, querendo muitas vezes apostar no sucesso individual, numa ideia falsa de que todos poderão ser líderes ou ser grandes protagonistas de suas carreiras. Tal propósito, muitas vezes, culpabiliza os próprios trabalhadores nos processos de demissão, como se eles não tivessem se esforçado o suficiente. Enfim, pode-se afirmar que todos os trabalhadores acabam sendo afetados pela desestabilização e desorganização do trabalho. Eles se tornam cada vez mais vulneráveis ao interesse bruto do capital e dos capitalistas dissimulados que se escondem atrás dos imperativos do mercado e dos acionistas.

PORTAL ADVERSO - Na sua opinião, que também está em sala de aula, que consequências a 4ª Revolução Industrial terá no cotidiano dos professores?

Ana Tercia - O que acontece dentro da sala de aula se relaciona com aquilo que acontece fora dela, ou seja, as mudanças de formato, as novas técnicas empregadas, dialogam, diretamente, com a dinâmica da sociedade, das economias e escolhas políticas. O EAD (Ensino à Distância) tem ganhado protagonismo cada vez maior, enquanto outras novidades vão se tornando cada vez mais comuns, obviamente, percebendo diferenças brutais, conforme a classe social, renda e se o ensino é público ou privado. Os professores perdem espaço nestas circunstâncias para “tutores”, que apesar de terem menor remuneração, acabam desempenhando funções que, antes, eram destinadas aos professores. Aulas gravadas para EAD também podem sofrer interferência direta da censura de gestores autoritários que não respeitam as premissas de um pensamento autônomo, crítico e pautado pelo conhecimento científico. Usos de lousa eletrônica, alterações na disposição das salas de aula, projetores de imagem e som, computadores, notebooks, tablets, celulares, softwares, livros em PDF, portais, compartilhamento de arquivos na nuvem, textos feitos de forma coletiva e online, aplicativos que organizam praticamente todo universo escolar e envolvem a relação com a própria entidade de ensino, os alunos e outros interessados, como os pais, fazem parte deste novo universo. As inovações passam por adequações nos currículos, exigindo dos professores outras qualificações e treinamento adequado para interagir com os novos tempos. Esta transição deve ser feita respeitando os profissionais com mais tempo de casa e idade, afinal, toda a sociedade passará por mudanças implementadas não de uma única vez, mas diluídas nos próximos anos.

"Aulas gravadas para EAD também podem sofrer interferência direta da censura de gestores autoritários que não respeitam as premissas de um pensamento autônomo, crítico e pautado pelo conhecimento científico."

PORTAL ADVERSO - Como será a atividade docente em um mundo dominado pelas novas tecnologias, com memórias implantadas e a impressão de órgãos humanos em 3D?

Ana Tercia - Todas as atividades profissionais, de algum modo, serão afetadas pelas inovações tecnológicas, algumas mais direta e rapidamente, outras no médio e longo prazo. Os docentes serão exigidos, cada vez mais, a acompanharem o ciclo das mudanças, pois deverão preparar as novas gerações para conviver e interagir neste novo cenário. Contudo, vale admitir uma visão mais cautelosa e não desesperada quando se pensa na 4ª Revolução Industrial. Não se pode assumir, passivamente, o discurso quase terrorista de que tudo, do jeito que conhecemos, vai acabar do dia para a noite. As coisas não são assim, envolvem decisões políticas, regulamentação, investimento, recursos materiais e mudanças culturais. Haverá um forte debate ético, sobretudo, quando se pensa nas possibilidades no campo biológico. Mas não apenas, pois outros temas fortes, como direito ao esquecimento, privacidade e segurança da informação, também serão cruciais. Os professores, nesse sentido, terão muitos desafios, não apenas ligados às suas ações como docentes, mas por terem que estar sintonizados com todos os riscos e oportunidades derivados das inovações tecnológicas que se anunciam.

"Não se pode assumir, passivamente, o discurso quase terrorista de que tudo, do jeito que conhecemos, vai acabar do dia para a noite. As coisas não são assim, envolvem decisões políticas, regulamentação, investimento, recursos materiais e mudanças culturais."

Por Daiani Cerezer

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