por Rose Gurski

Psicanalista (APPOA); Prof. do Instituto de Psicologia UFRGS e do PPG Psicanálise: clínica e cultura (UFRGS). Coord. NUPPEC (UFRGS)

Quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Leia o artigo.

 

                                                                                                               Rose Gurski[1]

 

“(...)Pego um navio para ir a um Congresso por conta do trabalho. Entro no navio e subo vários andares e cada andar que eu subo, as instalações vão ficando mais e mais precárias. Chego no 7º andar e é um grande salão, com vários triliches, tudo é muito precário...eu olho para o centro do salão e vejo uma colega, mais à direita olho e vejo outra colega... De repente já estou em outra cidade, uma cidade que tem muitas pessoas. Estou caminhando na rua, tem muita gente e muitos carros e, de repente, avisto meu filho no outro lado da rua e o chamo, mas, o perco em seguida. Começo a buscá-lo e não o encontro. Peço ajuda e ninguém pode me ajudar. Sigo vagando à procura do meu filho, até que acordo (V., 51 anos).”[2] 

 

Nas associações desta sonhadora, uma docente de Universidade pública de nosso país, surge o tema da precarização da vida e da dificuldade de imaginar um amanhã. No sonho, o filho aparece como perdido, questão que nas associações da professora seria uma espécie de desânimo seu com o futuro. O sonho acontece no mês de março de 2021, em pleno retorno do furacão pandêmico que transformou inúmeras vidas em cadáveres, arrastando corpos e esperanças.

Neste Setembro Amarelo, do ano de 2021, quando se lançam campanhas de prevenção ao suicídio, gostaríamos de lembrar que a dificuldade de sonhar com um amanhã – sensação que aparece em profusão no Brasil de hoje – é, de algum modo, muito semelhante ao que acomete aqueles que não suportam o vazio de sentidos e de perspectivas de futuro e acabam atentando contra a própria vida.

Toda a discussão sobre suicídio implica necessariamente uma discussão sobre as condições de (saúde mental) dos sujeitos e do laço social. Diferente do que muitas vezes é divulgado, as condições que levam às tentativas de suicídio, não se resumem a um mero desequilíbrio neuroquímico. Desde a psicanálise, entendemos o sofrimento psíquico também como produto da dialética entre o sujeito e o as condições do laço social.

É nesse sentido que nos perguntamos: como podemos imaginar um “amanhã” em um contexto suicidário (ou homicidário?) como o que vemos no Brasil de 2021? Vladimir Safatle[3] recolheu a expressão, estado suicidário, cunhada por Paul Virilio, a fim de nomear um modo de funcionamento do estado brasileiro que, impregnado pelas premissas neoliberais, estaria não só operando a gestão das mortes e desaparecimentos dos corpos, através da necropolítica, mas, gestando, também, sua própria catástrofe com novas formas de violência de Estado. No caso do Brasil, Safatle sugere que o Estado pode ser o próprio fiador da catástrofe no cenário da Covid-19 na medida em que, através da caótica gestão da enorme crise sanitária, repete compulsivamente a história de desigualdade social e genocídio das populações vulneráveis em nosso país.

Além disso, os negacionismos relativos aos fatos vividos no Brasil em meio à propagação da Covid-19 parecem funcionar como uma aceleração na direção de uma espécie de autodestruição. Nesta via também convergem os discursos de ódio e as fakes news que intoxicam os laços e levam a uma autorização tácita da violência com diferentes práticas de extermínio na direção de minorias.

Theodor Adorno[4], no célebre texto “A educação após Auschwitz”, preocupado com o retorno de práticas fascistas no laço social nos anos de 1960, diz que, depois do genocídio nazista, a educação teria apenas e, fundamentalmente, uma função, que seria a de impedir o retorno à barbárie e a repetição de Auschwitz.

Temos assistido incrédulos à crescente impermeabilidade aos dissensos também nas portas das Universidades. Entre alguns fatores que participam do quadro de declínio da educação como espaço de construção de alteridade e de um “outro amanhã”, encontram-se a precarização das condições de ensino e pesquisa no país, a desqualificação da função docente, a ausência de investimentos na Universidade e na ciência, entre outros.

Tomando os ataques na direção da educação superior pública, da pesquisa e da ciência que temos sofrido, gostaria de compartilhar algumas inquietações que me parecem fundamentais ao debate sobre as condições de saúde mental de alunos e professores de nossas Universidades públicas: Seria a demonização do lugar das universidades, da ciência e da pesquisa, um processo gradativo de barbarização do laço social e da educação no Brasil? Como poderemos retomar, na vida acadêmica, a possibilidade de sonhar com um amanhã?

Importa sublinhar que a Universidade através das diferentes formas de transmissão de conhecimentos e saberes, sempre funcionou como um lugar fundamental para o fomento de sonhos e utopias. Ainda cabe lembrar que os danos psíquicos produzidos pela pandemia se sobrepuseram a um cenário anterior no qual já se apresentavam muitos ataques na direção de intelectuais, pesquisadores e docentes pela via da disseminação de um ideário que combate a pluralidade de pensamento[5].

Toda essa demonização cresceu na medida em que alguns grupos ideológicos foram, gradativamente, assumindo espaços na esfera pública e a sociedade foi sendo autorizada tacitamente a rechaçar temas progressistas, entre eles, a possibilidade de conviver com as diferentes formas de diversidade: racial, sexual, social e religiosa. As pautas educativas foram bombardeadas por discursos de ódio e pela propagação de uma educação apolítica com destruição do caráter crítico e do livre pensar. Sabemos que sistemas políticos totalitários costumam cercear o pensamento e censurar os modos de transmissão, desautorizando a palavra de todos aqueles que lidam, em seus ofícios, com a multiplicidade de sentidos.

Assim, penso que, como docentes de Universidades públicas brasileiras, nos cabe reconstruir junto à sociedade, a função maior da educação: a transmissão tanto de saberes tecidos ao longo de séculos, como de conhecimentos inovadores forjados em investigações comprometidas com a ética da ciência e da pesquisa. Em nossas pesquisas, no NUPPEC/UFRGS, temos apostado, por exemplo, no resgate do sonho e do sonhar justamente como um modo de mirar em um futuro com futuro, resistindo ao apagamento da multiplicidade de sentidos que as imagens oníricas carregam.

Talvez, o modo mais interessante de prevenir suicídios seja justamente tratarmos de cuidar que o laço social e político seja sustentado sempre pela diversidade e pela pluralidade. Se trata de permitir, como dizia Hannah Arendt (2001)[6], que as novas gerações possam ter o desafio de cunhar o seu “novo” através de uma perspectiva de amanhã que não se apresente como a repetição ecolálica e patética do passado. É nesse sentido também que Adorno alertava que, após Auschwitz, não se tratava só da morte dos corpos, mas, também, da morte em vida que um estado totalitário (e suicidário) pode operar.

A preservação do amor mundis[7], o amor à renovação do mundo pela via da garantia de aspectos sociais, políticos e educacionais – que promovam a construção do novo de cada geração que chega – é, sobretudo, um modo de produzir condições para que os sonhos sejam os protagonistas da vida. É nessa direção que o espaço para os sonhos e o sonhar, no laço social, se coloca como uma forma de intervenção ético-política que, ao visar a promoção da vida, tem, na prevenção ao suicídio, um de seus efeitos.

 


[1] Psicóloga e psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Professora do Instituto de Psicologia UFRGS, do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Programa de Psicologia Clínica USP. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura - NUPPEC/CNPq -UFRGS. Autora do Livro Três Ensaios sobre Juventude e Violência (Escuta, 2012).

[2] Esse sonho faz parte do acervo da pesquisa “Sonhos em tempos de Pandemia”, um trabalho conjunto de quatro universidades públicas brasileiras (UFRGS, UFMG, USP e UFRJ). Para mais informações, ver: DUNKER, C.; PERRONE, C. M.; IANNINI, G.; ROSA, M.; Gurski, R. (Orgs.). Sonhos confinados: O que sonham os brasileiros em tempos de pandemia. São Paulo: Autêntica, 2021.

[3] SAFATLE, V. Bem-vindo ao Estado suicidário São Paulo: n-1 Edições, 2020.

[4] ADORNO, T. Educação após Auschwitz. In T. Adorno, Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

[5] A demonização de professores e intelectuais em um tempo anterior à pandemia mostrava seus efeitos pelas estatísticas crescentes de estados de depressão e até mesmo de um crescente aumento de tentativas de suicídio. Ver https://novaescola.org.br/conteudo/17037/como-promover-a-saude-mental-do-docente e https://lunetas.com.br/saude-mental-pesquisas-apontam-o-adoecimento-de-professores/

[6] ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001.

[7] HEBERLEIN, Ann. Entre o amor e o mal: uma biografia. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2021.

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