por André Marenco

Professor titular do Departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, IFCH

Segunda-feira, 02 de novembro de 2020

André Marenco é professor do PPG em Políticas Públicas da UFRGS.

Alguns meses atrás, publiquei um pequeno texto no Portal Adverso da ADUFRGS[i], buscando problematizar a equivalência entre paridade e democracia, insistentemente reafirmada pelos defensores daquela regra de eleição universitária. Continuo convencido que seus argumentos confundem autonomia com soberania, desprezam a participação dos cidadãos em decisões sobre instituições públicas e defendem um pacto interna córporis sob roupagem democrática.

Mas a fila anda, e o debate tem introduzido novos argumentos. Um dos mais recentes, esgrimido por artigo de Fernando Nicolazzi em resposta a Rogério Severo imputa aos críticos da paridade o estigma de “elitismo”, arguindo, ainda, que não existiriam evidências de que a regra da paridade provocaria declínio na qualidade das universidades que a adotam. Acredito que o foco da crítica de Nicolazzi dirige-se a um “elitismo acadêmico” -argumentos em torno de uma assimetria de responsabilidades no interior da comunidade acadêmica- uma vez que penso existir um forte consenso entre nós em relação à crítica ao “elitismo social” que impregnou universidades até recentemente, e o papel altamente positivo que políticas de ação afirmativa tem desempenhado para promover igualdade de oportunidades.

Somos elitistas?

Conforme os dados da base Scimago[ii], a produção científica anual brasileira conheceu um incremento superior a 800% no período entre 1996 e 2019. Em algumas áreas como Odontologia, Veterinária e Agrárias, o Brasil disputa posição de liderança mundial no volume de produção científica. Uma pista para compreender esta evolução pode ser obtida quando cotejamos estes dados com a informação referente ao número de doutores titulados/ano no país, neste mesmo intervalo temporal. Ou seja, usando doutores como proxy para mensurar a expansão do sistema nacional de pós-graduação, verificamos uma expressiva correlação entre pós-graduação e a expansão da ciência e tecnologia brasileira, algo que muitos trabalhos já mostraram previamente[iii]. Paralelo, notável trabalho do CGEE revelou dados sobre a profissionalização de mestres e doutores formados neste período[iv].

Gostaria de destacar dois aspectos da -bem sucedida- experiência brasileira de pós-graduação: (i) o que contribuiu para sua expansão e qualidade e, (ii) as interações entre pós-graduação e o sistema universitário.

A história da pós-graduação brasileira não pode ser dissociada da criação da CAPES (1951), do Parecer Sucupira (1967) e da implantação da avaliação, a partir de 1976. Diferente da graduação onde universidades possuem autonomia para a criação de cursos, a acreditação de novos cursos na pós-graduação é um processo altamente regulado e centralizado pela CAPES. A cada ano, cerca de 70% dos APCNs são rejeitados, produzindo uma imagem quase invertida em relação à graduação: 70% dos cursos de PG são de instituições públicas. O desenvolvimento de padrões de avaliação comparativa, baseada em produção científica e formação de mestres e doutores contribuiu para fixar parâmetros e exigências de qualidade elevados, aos quais programas tiveram de adaptar-se, ou perecer. Críticas, como a de que o sistema seria “produtivista” ou a desconstrução empreendida nos últimos anos não podem eclipsar o impacto que a avaliação da CAPES teve sobre a consolidação da pós-graduação no Brasil. Por sua vez, a qualidade da pós-graduação vertebrou o sistema universitário, influenciando positivamente na graduação e extensão. Não teria sido o “elitismo” induzido pela avaliação -no credenciamento de docentes, nas exigências de produção, Qualis, fator de impacto, internacionalização, nos prazos para defesas- justamente o fator para explicar o êxito da pós-graduação brasileira?

Dois mundos?

O fato de constituir um sistema regulado nacionalmente pela CAPES e ter reconhecido (pelo menos até recentemente) particularidades próprias de cada uma das 49 áreas de avaliação, fez com que as interações fossem quase que exclusivamente verticalizadas, entre PPGs-Áreas-CAPES. Ou seja, o funcionamento de um programa de pós-graduação foi quase sempre pautado por regras gerais ou de cada área e por interações em fóruns como comissões de avaliação de área.

Fui membro do CTC-ES entre 2011-2018, e na maior parte deste período, a UFRGS foi a instituição com o maior número de coordenadores de área e membros no CTC-ES. Apesar disto não recordo de nenhuma reunião entre PROPG  e estes coordenadores/área. Da mesma forma, a menos que minha memória tenha me traído, a última vez que a UFRGS promoveu um seminário para avaliar a sua PG foi em 2011. O ponto aqui é que a pós-graduação funciona como um mundo “à parte” dentro das universidades, conectado direta e nacionalmente com a CAPES.

Se este argumento estiver correto, de fato a “paridade” afeta pouco o desempenho da pós-graduação. O problema reside justamente aqui: aprofundar o abismo existente dentro das universidades entre dois mundos. Um “elitista” (“produtivista”?) pautado pelas exigências de produção de conhecimento e formação de recursos humanos; outro, “paritário”, pautado por agendas corporativas.

O ludismo representou uma reação de trabalhadores à revolução industrial, através da quebra de máquinas. Suspeito que entre nós exista um ludismo acadêmico, que consiste em opor-se a qualquer inovação frente à rotina pedagógica. Avaliação/CAPES e Qualis foram rejeitados como “produtivistas”; mestrados profissionais foram rejeitados como “privatizantes”; o ERE foi rejeitado como “precarizante”. A lista pode ser longa e sugere a pergunta: onde estaríamos se esta agenda tivesse prevalecido?

Se não me equivoco, em sua crítica ao texto de Rogério Severo, Fernando Nicolazzi ressalta que não se deve confundir o processo de escolha de dirigentes universitários com o exercício de gestão administrativa. Aqui, acredito haver dois problemas: (i) a isonomia existente entre “funcionários públicos” universitários, base argumentativa dos defensores da paridade, parece encerrar-se ao final do processo eleitoral. Se somos todos portadores de iguais atributos e responsabilidades no que diz respeito às atividades finalísticas da universidade -ensino, pesquisa e extensão- porque, então, técnicos (ou mesmo discentes) não poderiam ocupar cargos de gestão, como Reitor, Diretor, Chefe de Departamento, Coordenador de PPG? Como na fábula, Rodes é aqui… (ii) a suposição de que uma coisa é o processo eleitoral, outra, as características da gestão universitária, resgata um sério problema da teoria democrática: não seria este, justamente, o fulcro do “elitismo” schumpeteriano, a separação entre eleição e gestão?

Filio-me a uma corrente analítica que os cientistas políticos chamam de neoinstitucionalista, para a qual regras influenciam resultados. Escolhemos regras de decisão em função de resultados que desejamos alcançar. Não me pretendo porta voz dos defensores da paridade para explicar quais seriam suas pretensões. Mas posso explicitar o que infiro de diferentes regras de eleição de dirigentes universitários. Recentemente, no debate sobre o ERE, assistimos a representação discente obstruindo votações à despeito de todas as garantias que foram construídas para minimizar danos a alunos mais vulneráveis a pandemia, inclusive sugerindo que as atividades de ensino permanecessem paralisadas até o final da pandemia. Quais as implicações disto para o dever da UFRGS em garantir ensino a 50 mil alunos? Ou como justificar frente a uma sociedade assolada pela doença e empobrecimento, o fechamento indefinido de uma universidade pública?

Há algumas semanas, manifesto de técnicos expressou esta incrível ameaça:

Reiteramos que, no campo do arbitrário, nunca houve e não haverá espaço para o trabalho dedicado e zeloso que sempre buscamos desempenhar na nossa unidade.

Trabalho dedicado e zeloso é uma OBRIGAÇÃO de todos os servidores públicos, que são remunerados com recursos públicos para exercê-lo. Não consta no contrato de nenhum de nós uma condicionalidade pela qual estaríamos desobrigados de nossas funções em razão de divergências de opinião.

Minha hipótese é que uma e outra posição decorrem de graus de responsabilidade que discentes e técnicos ocupam no interior do sistema universitário: vínculos temporários, no caso de alunos, e alheamento em relação a atividades finalisticas de universidades, entre os técnicos.

Neste ponto, a pergunta diz respeito a quais pautas devem orientar nossos modelos de gestão universitária: aquela responsável por produzir conhecimento científico, formar recursos humanos, gerar insumos para a sociedade, ou o corporativismo sindical e estudantil com suas demandas (legítimas, diga-se de passagem), mas de curto prazo e não decorrentes de ensino, pesquisa e extensão?

Não apenas as distinções entre atividades finalísticas -ensino, pesquisa e extensão- e tarefas meio -administrativas- são inolvidáveis em instituições públicas destinadas à produção de conhecimento e formação de recursos humanos, como tenderão a ampliar-se no futuro. Atividades administrativas, como protocolo de processos, já estão sendo realizadas através do SEI; embora mais lenta, a digitalização de acervos bibliográficos irá alterar a relação física de discentes com bibliotecas; uma integração de plataformas Lattes/Sucupira, poderá dispensar a burocrática realização do Coleta, todos os anos.

Porque a Constituição Federal de 1988 consagrou o princípio da autonomia universitária? Para afirmá-las como instituições de Estado, protegidas contra ciclos eleitorais e caprichos governamentais. Para que universidades possam cumprir sua vocação de produzir conhecimento e formar recursos humanos. Repartições públicas não possuem autonomia constitucional. Ao entrar em sala de aula, no primeiro dia de sua carreira, um docente percorreu pelo menos 10 anos de formação prévia para aquele momento. Nos 30 anos seguintes, terá exigências de ensino, orientação, pesquisa, publicação, extensão e, inclusive, atividades administrativas. É razoável, considerando o espirito da Lei, que docentes representem apenas 1/3 dos votos responsáveis pela escolha de dirigentes universitários? Não representa uma usurpação da soberania dos cidadãos implementar esta regra a partir de um pacto interna córporis? 

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