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Sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Depois do STF não reconhecer a modalidade, governo vai forçar o tema com medida provisória. Para especialistas, agenda pode impactar o direito à educação.

Texto Ana Luiza Basilio - Carta Educação

Foto: Marcelo Camargo - Agência Brasil 

 

Entre as 35 metas prioritárias para os 100 dias de governo de Jair Bolsonaro, está prevista, no âmbito do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado pela ministra Damares Alves, a regulamentação do direito à educação familiar pelo Supremo Tribunal Federal via medida provisória. A previsão é que o texto seja publicado até o dia 15 de fevereiro, segundo a assessoria de imprensa do Ministério.

Uma primeira versão do texto foi anunciada pelo governo em janeiro, mas não divulgada. No ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu não reconhecer essa modalidade de ensino. Para a Corte, a Constituição prevê apenas o modelo de ensino público ou privado, cuja matrícula é obrigatória, e não há lei que autorize a medida.

O que muda com a Medida Provisória?

A medida provisória abre um novo caminho de judicialização do tema. Com a MP, o tema ganha força imediata de lei. O Legislativo só é chamado a discutir, aprovar ou descartar a pauta em um momento posterior, mas o fato é que ela já começa valendo.
De acordo com o artigo 62 da Constituição Federal, uma medida provisória tem por pressuposto urgência e relevância. “Mas nem sempre o Executivo respeita esse critério quando edita uma MP, como é o caso do homeschooling. Isso precisa ser questionado na Justiça, é um claro abuso”, avalia o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito a Educação, Daniel Cara.

Outro ponto crítico para o especialista é a pauta vir alocada no Ministério comandado por Damares e não no de educação. “Deveria estar no MEC, o que só revela o conservadorismo estrutural desse governo. Nas entrelinhas das falas do governo, além do que se ouve nos bastidores de Brasília, a ideia é que o homeschooling seja acompanhado pelas mães e avós, que seriam as tutoras presenciais dos filhos e netos. Ademais, a Ministra Damares quer ter uma agenda mais material do que “meninos vestem azul, meninas vestem rosa“. Contudo, é preciso ler o texto da MP e observar a postura da base do governo em emendas para saber se essa intenção se materializa. Mas já estamos de sobreaviso”, sinaliza Cara.

Cenário

Um levantamento realizado pela Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), uma das principais influenciadoras do tema, indicam 7,5 mil famílias e 15 mil estudantes na modalidade, em 2018. No documento oficial divulgado pelo governo, no entanto, a estimativa apresentada é de 31 mil famílias, quase cinco vezes o número da associação.
De qualquer forma, o número dos que aderem à modalidade é pouco representativo diante os quase 50 milhões de estudantes da educação básica. Motivo pelo qual o professor da Universidade Federal do ABC, Salomão Ximenes, também questiona o senso de urgência dado ao tema.

“Eu vejo uma inversão de posição. O que é urgente é que as famílias matriculem seus filhos nas escolas após a decisão judicial do STF e não que esse grupo, aparentemente limitado, justifique algo extremo como uma medida provisória. Vejo um certo oportunismo desse lobby de homeschooling para usar a ilegalidade a favor de um interesse próprio, sem discussão democrática no Congresso Nacional”, avalia.

A possibilidade de educar em casa também não parece dialogar com a realidade social e financeira da maior parte dos brasileiros, que têm rendimento médio domiciliar per capita – a soma dos rendimentos mensais dos moradores do domicílio – de R$ 1271,00 (PNAD Contínua, 2017). Em entrevista concedida à imprensa, o presidente da Aned, Ricardo Dias, reconheceu que 9% das famílias que aderem à modalidade estão na região Sul do País, a de maior rendimento médio domiciliar per capita, R$ 1567,00.
Uma mãe de Curitiba, adepta do homeschooling, ouvida pelo Carta Educação em condição de anonimato, contou que recorre a professores particulares para encaminhar a educação de seus dois filhos, de sete e 10 anos de idade.
Ela conta que, entre os motivos que a fizeram tirar os filhos da escola, está o bullying sofrido pelo caçula e também a falta de um atendimento personalizado, que considere as características individuais das crianças no processo de aprendizagem.

Tirar da escola resolve?

Para os especialistas ouvidos pela reportagem, os problemas estruturais e pedagógicos das escolas não podem ser utilizados para justificar a pauta do homeschooling como uma demanda macro e, sim, devem ser enfrentados com ações e políticas no contexto escolar.
É o que coloca a professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Carlota Boto. “O bullying é um problema? É. Ele é, sobretudo, uma forma de hostilidade e as escolas devem trabalhar o universo da socialização das crianças para diminuir a sua ocorrência. Na vida em sociedade nós também vivemos experiências de intolerância e hostilidade. O que eu quero dizer é que tirar os filhos das escolas não resolve a dificuldade social das crianças”, atesta a educadora reafirmando a importância de projetos políticos pedagógicos orientados para todas as questões escolares.

“A escola, bem ou mal, apresenta às novas gerações a diversidade do mundo, as diferenças, a pluralidade cultural. Tudo isso é necessário. Será que é válido criar as crianças em uma bolha familiar? Será que isso é direito?”, questiona Boto.
O direito à educação em risco
O artigo 205 da Constituição Federal reconhece a educação como um direito de todos e dever do Estado e da família e sua promoção com a colaboração da sociedade, “visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Para Daniel Cara, é impossível atingir a dimensão em um processo de ensino-aprendizagem realizado pelas famílias e fomentado por sistemas de educação à distância. “A convivência com alunos e professores nas escolas é fundamental pedagogicamente e compreende o direito à educação, que vai muito além da mera instrução”.
O encaminhamento e os desdobramentos do tema ainda são obscuros para Ximenes, que inclusive relembra que o STF ainda não publicou o acórdão do tema. Para ele, a pauta pode caminhar apenas para colocar na ilegalidade a prática do homeschooling, como também para reconfigurar o direito a educação no Brasil, “o que seria um retrocesso”.
“Se partirmos para o entendimento de que a família está acima do Estado na definição da educação será necessário redesenhar não só a concepção de educação, como a de política educacional e de escola pública”, atesta.
Ximenes reforça a concepção de educação pública e republicana que, além da complementaridade entre Estado e família no dever de estudar, reconhece a educação obrigatória “como um requisito necessário para a igualdade e democracia, independente da posição de seus pais”.

A preocupação dos especialistas mira nos interesses que sustentam a agenda e que, para eles, tem convergência com o Escola sem Partido. O presidente da Aned, Ricardo Dias, traz como um dos motivos para os pais tirarem seus filhos da escola a “doutrinação ideológica”, principal reivindicação do movimento, amplamente acolhida por Bolsonaro e seus representantes governamentais, como o ministro da educação Ricardo Vélez Rodríguez.

“A triste realidade é que o homeschooling e o Escola sem Partido colocaram as escolas no centro da guerra cultural bolsonarista, que serve fundamentalmente para amelhear militantes e apoiadores para a ultradireita – a partir da mentira astuta contra as escolas e a pedagogia”, critica Daniel Cara.
Para Salomão, caso formalizado, o homeschooling pode expandir o mercado educacional e sua oferta de produtos e serviços. “E em que medida esses atores, que se beneficiam desse tipo de oferta, não vão influenciar os pais a não matricularem seus filhos nas escolas?”, questiona.


 

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