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Quarta-feira, 20 de maio de 2020

A pesquisa da UFRGS, em parceria com a USP e a UFMG, revela o que as pessoas estão sonhando durante a crise do coronavírus. O tema da morte é corriqueiro.

Nesse momento em que a Ciência é questionada por algumas forças políticas e, ao mesmo tempo, chamada pela sociedade para a luta e solidariedade, a ADUFRGS-Sindical vem divulgando o que está sendo feito pelas Instituições Federais de Ensino da sua base para o enfrentamento da pandemia. E não são poucos os exemplos de pesquisas que buscam auxiliar todos aqueles que estão na linha de frente no combate à COVID-19, mas também àqueles que, em isolamento, estão em casa cuidando de si e preservando os demais. Conheça, agora, mais uma importante pesquisa na área da Saúde Mental.

O projeto de pesquisa “A Oniropolítica em Tempos de Pandemia” vem sendo desenvolvido pelo Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC) da UFRGS em conjunto com outras duas universidades públicas: a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Na UFRGS, quem coordena o trabalho são as professoras Rose Gurski e Cláudia Perrone, ambas docentes do Instituto de Psicologia da UFRGS e do PPG Psicanálise: clínica e cultura; em São Paulo a coordenação é dos professores Christian Dunker e Miriam Debieux Rosa, do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da USP; e em Minas Gerais, do professor Gilson Iannini, do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMG. Desde 2019, a referida pesquisa se desenvolve a partir das interações de três Laboratórios de Pesquisa: NUPPEC/UFRGS; PSOPOL/USP e LATESFIP/USP.  No momento da pandemia, o projeto passou a contar também com o Laboratório de Psicanálise da UFMG.

O objetivo da pesquisa é coletar sonhos de profissionais da saúde e da educação para, por um lado, entender as estratégias psíquicas utilizadas a fim de lidar com a situação traumática atual e, por outro, criar condições para a construção de um certo despertar tanto do sujeito, como  da sociedade neste momento difícil pelo qual todos estão passando, explicam Rose e Claudia. “Temos visto que, frente ao novo contexto trazido pela pandemia, áreas vinculadas à saúde e à educação estão ainda mais fragilizadas do ponto de vista da saúde mental. Por um lado, temos profissionais da saúde trabalhando na linha de frente, expondo-se ao risco de vida e, por outro, educadores, de diferentes níveis de ensino, em função do isolamento social, vendo-se no desafio de criar novas maneiras de transmitir e ensinar à distância sem qualquer tipo de respaldo metodológico”, destacam as pesquisadoras.

O grupo já recebeu mais de 500 contatos de interessados em contar os sonhos. Destes, 192 já retornaram com sonhos narrados. Os sonhos podem ser escritos, narrados por mensagem de voz ou, caso o sonhador queira, pode solicitar que um pesquisador faça contato por voz a fim de que narre seu sonho “ao vivo”. 

Saiba mais sobre “A Oniropolítica em Tempos de Pandemia” na entrevista a seguir, concedida pelas professoras Rose Gurski e Cláudia Perrone ao Portal ADverso.

    
O que significa a Oniropolítica e como surgiu o termo? Rose Gurski

Nosso grupo já vem, há alguns anos, trabalhando na tentativa de construir dispositivos clínicos, desde a psicanálise, que possam ser validados em trabalhos de escuta na cidade e nas instituições, ou seja, fora do consultório; ao mesmo tempo, nos impulsiona também a vontade de levar a pesquisa acadêmica para dialogar com as demandas mais urgentes de nosso laço social, aproximando universidade e sociedade. 

No caso de nosso Eixo3 (Linha de Pesquisa Psicanálise, Educação, Adolescência e Socieducação) do NUPPEC, essa trajetória vem sendo construída a partir de um diálogo intenso com a Socioeducação (política pública dirigida aos jovens em conflito com a lei). Neste diapasão, temos buscado adensar conceitualmente o trabalho de encontro da psicanálise com esta política pública em especial. Foi assim que, na esteira de pesquisas no âmbito da socioeducação que abordaram o tema da associação livre, atenção flutuante, interpretação, entre outros, colocou-se, para nós, a importância do trabalho com o tema dos sonhos. 

Nossas pesquisas articulam a psicanálise com elementos da obra de Walter Benjamin, um filósofo alemão cujos estudos, em alguns aspectos, podem ser aproximados da psicanálise. O trabalho dele é importante para nós, pois ele operou  uma importante crítica da Modernidade utilizando elementos da psicanálise. Um desses elementos é o sonho. Podemos dizer que as  construções teóricas benjaminianas legaram  novas elaborações psicanalíticas quando afirmam que o sonho tem uma dimensão ampla que abarca o adormecer, o sono e o despertar. 

Essas ideias potencialmente já estavam em Sigmund Freud. Mas, com Benjamin,vamos encontrar a noção de que o sonho tem uma dimensão de análise social a ser explorada, o que nos leva a pensar que os restos do dia que aparecem nos sonhos de cada um estabelecem uma ligação com o coletivo no qual o sonhador está inserido. 
Cláudia Perrone

No trabalho com os sonhos, ao articularmos Freud e Benjamin, vamos encontrar a ausência de fronteiras entre o privado e o público, entre o sujeito e o social. Partindo, portanto, da noção que os sonhos além de enunciarem questões do particular do sujeito simultaneamente evocam aspectos da estrutura história e coletiva, temos apostado na busca da dimensão do despertar do sujeito e da sociedade, tomando o sonho como um elemento inovador que carrega percepções e compreensões passíveis de lançar novos sentidos à vida diurna. Com esta concepção e, vivendo em meio a uma espécie de convulsão política e social nos últimos anos no país – mais especialmente, a partir de 2018 – a construção da Oniropolítica colocou-se, para nós, como uma questão fundamental.

Ou seja, ao articularmos sonhos, psicanálise e política chegamos na construção oniropolítica. Trata-se de pensar na função coletiva do sonho e do sonhar desde questões que se estendem às formas políticas e sociais nas quais os sujeitos estão inseridos. A oniropolítica não busca a dimensão terapêutica do sonho, nem tampouco tem como proposta a construção de noções específicas de uma biografia ou mesmo da psicopatologia do sujeito. Temos pensado que o trabalho com o sonho e com o despertar pode operar uma possibilidade de fazer “furo” no discurso totalitário, religioso e hermético da atualidade.

Também temos pensado que acaso a psicanálise pudesse contribuir com uma política, seria a Oniropolítica, uma política dos sonhos, ou seja, uma política do sujeito e do desejo. Nesse sentido, a oniropolítica poderia ser pensada como uma terceira via, nem a biopolítica, tampouco a necropolítica, que colocam em causa políticas de Estado. A Oniropolítica abarca e tensiona a dimensão do desejo, seria como uma tentativa de tensionar as atuais políticas de morte, resgatando, na vida diurna, a dimensão do sujeito e do desejo desde as imagens dos sonhos. 


O que os sonhos, de uma forma geral, podem trazer à compreensão de um momento histórico, como o que estamos vivendo?

Conforme mencionamos, os sonhos trabalham com a dimensão do que é dado a ver, eles provocam uma percepção do cruzamento temporal, do passado e do presente e, também, uma dimensão do futuro, aquilo que pode advir, o novo de que falávamos. 

Nesse sentido, queremos, justamente, resgatar aquilo que é percebido sem, muitas vezes, o sujeito “saber”. Os sonhos carregam uma dimensão de percepção da vida diurna com elementos que o sujeito “não sabe que sabe”. Na busca da dimensão do despertar do sujeito e da sociedade, o sonho pode ser um elemento inovador que traz percepções e compreensões passíveis de lançar novos sentidos à vida diurna. 

A jornalista alemã Charlotte Berardt demonstra claramente essa hipótese no seu livro Sonhos do Terceiro Reich, uma inspiração inicial de nossa pesquisa. Ali, ela mostra que mesmo na ausência de um funcionamento totalitário claro na sociedade, a questão já aparecia no registro dos sonhos. Um medico alemão conta no inicio dos anos de 1930, que sonhou que todas as paredes de sua casa caiam, marcando a invasão do mais íntimo do sujeito, o sonho, pelo sistema político.

Com o que as pessoas estão sonhando mais neste momento de pandemia do coronavirus?

As pessoas estão sonhando muito com o tema da morte de diferentes formas: aparece o temor de correr riscos, perigos, questões de segurança do corpo. Temos vários sonhos, por exemplo, de pessoas do campo da saúde que se dizem muito assustadas nos sonhos, e também fora deles, com a possibilidade de transmissão do vírus para os familiares.

Também, vemos muitos sonhos com o tema das perdas: perda do carro, do endereço de casa, da memória, de pessoas e outras; ou ainda, perder-se e não saber voltar para casa; sensação de estar perdido; perda da direção... Relatam perda de marcadores de tempo no isolamento e a sensação de andar e não se movimentar. Também aparecem sonhos com pedras, penhascos, obstáculos, maratonas. São sonhos de forte angústia, onde aparecem ambientes com pouca luz, descrição de mal-estar, muitas questões que remetem a incertezas, dúvidas, ausência de possibilidade de controle, além da sensação de perseguição, traições, falta de confiança nos laços. (Veja um exemplo de sonho relatado à Pesquisa no final desta entrevista).

Que sentimentos e pensamentos podem ser associados aos sonhos coletados até o momento? Já há alguma direção apontada pela pesquisa? 

Em situações críticas, de intenso desamparo e angústia, como momentos de catástrofes sociais, ou de intensas perdas pessoais e/ou coletivas, a função onírica parece ser mais intensamente convocada. Isso porque o sonho tem justamente como uma de suas funções elaborar aquilo que está indigesto para o sujeito, o que chamamos de traumático, que também pode ser chamado do inominável, aquilo para o qual o sujeito não tem uma nomeação. 


Cena de sonho no filme "A Origem"

O sonho nessas situações funciona como uma espécie de proteção para o psiquismo ajudando a atenuar os efeitos nefastos do sofrimento trazido por situações traumáticas. Os sonhos, a partir das articulações imagéticas (cenas muitas vezes assemelhadas a uma alucinação), funcionam como um modo de nomeação para a angústia.

A pandemia da Covid-19 é uma situação traumática, produzindo grandes mudanças no cotidiano das pessoas, com intensas perdas que vão, desde as mortes diárias, até perdas da regularidade do dia-a-dia, questão que, sobretudo, impacta os traços de identidade do sujeito, como por exemplo, sua rotina laboral e social. 

De que forma a consciência e a compreensão dos sonhos podem ajudar os próprios sonhadores nesse contexto de crise? 

Como função psíquica, os sonhos são uma elaboração daquilo que chamamos, em psicanálise, do traumático, ou seja, aquilo que o sujeito não consegue representar, simbolizar e que resta como incômodo ao psiquismo na forma de angústia, mal-estar e outros sintomas. A possibilidade de figurar, ou seja, traduzir em uma imagem o que está difuso e ameaçador implica em uma operação de elaboração que transforma uma experiência passiva e aterradora em uma experiência ativa, que pode vir a produzir uma abertura para diferentes possibilidades tanto no campo da compreensão, como no campo da ação.

Relato de um sonho

Segundo as professoras entrevistadas, o primeiro livro sobre a pesquisa dos sonhos em tempos de pandemia deve ser publicado até setembro deste ano. Enquanto o lançamento da obra não chega, as pesquisadoras apresentam um relato dos já 192 sonhos narrados para a pesquisa:

SONHADORA 54
Idade: 48 anos
Autodeclaração étnico-racial: branca
Gênero: feminino
Escolaridade: ensino superior completo
Profissão e/ou área de atuação: professora de adultos e adolescentes
Cidade/Estado: SP/SP

“Sonho bastante, mas notei que após o confinamento meu sonhos se tornaram mais intensos, mais longos e semelhantes a filmes. Também os temas começaram a se repetir: sonho muito com casas, o interior de casas, com minha mãe e com praias (amo praia). Nos sonhos com casas estou em cabanas lindas, pequenas, acolhedoras, aconchegantes, de arquitetura simples porém visivelmente interessante. Lugares/lares que eu sonho há muito tempo pra mim, longe de SP, no mato, na praia, no campo. São refúgios. As praias geralmente são praias em que já estive e guardo recordações físicas... sol, areia, cor, cheiro... eles vêm a tona nos sonhos. Como se estivesse revivendo. Às vezes estou com meu namorado, às vezes sozinha. Nos sonhos com minha mãe geralmente ela está me submetendo a alguma situação de crueldade extrema, como por exemplo soltar meus gatos na rua e agir com inocência nitidamente patológica. Estes geralmente acabam em violência, eu agredindo ela fisicamente.  Estou com insônia, o que se agravou no período de quarentena. Pedi ao meu médico psiquiatra algo para ajudar, ele entrou com hipnótico que não deu muito certo pois pareço bem sensível a esse tipo de medicação e tenho uma sensação de ressaca no dia seguinte. Agora estou com uma outra medicação, que na verdade é um anti depressivo que tem efeito no sono. Tomo alguns dias, mas também não gosto dos efeitos no dia seguinte. Isso contribuiu para sonhos mais longos me parece, que me cansam muito até fisicamente. Também utilizo um antidepressivo há uns 8 meses que deixaram meus sonhos mais vívidos (promessa concretizada da bula), o que não avalio como bom e sim bastante artificial.”