por Silvia Generali da Costa

Professora Associada (UFRGS/EA/PPGA)

Terça-feira, 31 de julho de 2018

O assédio moral é um tipo de violência que se manifesta por palavras, atos ou comportamentos agressivos.

O assédio moral é um tipo de violência que se manifesta por palavras, atos ou comportamentos agressivos, e que gera danos à autoestima, às relações sociais e à personalidade das vítimas. No caso específico do assédio moral no ambiente de trabalho, a violência pode se manifestar como prática gerencial para aumento de produtividade, tornando
a empresa ambiente fértil para indivíduos com tendências perversas. Marie-France Hirigoyen, 2002

Cena 1: No dia 16 de abril de 2015, às 17h, eu e minha filha fomos assaltadas por dois indivíduos armados. Levaram o carro, a bolsa, quase todos os CDs (exceto o da Rita Lee, cuja mensagem não deve ter soado atraente aos jovens meliantes), livros (todo professor tem livros no carro), telefone, não sei o que mais.

Meus amigos me consolaram: “- Vão-se os anéis, ficam os dedos”.

Cena 2: Vou à Delegacia de Polícia registrar a ocorrência. Encontro uma placa: fechado das 19h às 21h. Motivo: horário de jantar do escrivão. Retorno às 21h30min. Só há um escrivão para registrar todas as ocorrências da zona. Ao menos está de barriga cheia. Por enquanto.

Cena 3: Exatos 6 meses depois, no dia 16 de outubro de 2015, às 17h, fomos novamente assaltadas. Um "elemento", para utilizar a linguagem do jornalismo policial, armado, levou o carro novo, com quatro mil quilômetros, o celular, a bolsa, os CDs, os livros. Já vi esse filme.

Meus amigos, solidários como sempre, me abraçaram, me deram apoio moral e logístico e tentaram me consolar. Quase todos, se não todos, disseram: "- Que bom que só levaram o carro, que não aconteceu nada com vocês, então não foi nada".

Cena 4: Vou à delegacia de polícia registrar ocorrência. Sou recebida pelo único escrivão da DP, com ar visivelmente estressado. Quem sofre é o computador, cujos teclados são espancados a cada nova informação registrada. Ele conta que sua casa alagou com as últimas tempestades.
Solidarizo-me com ele. A minha também alagou.

Os amigos, que me acompanham no registro policial, dizem: "- Pior o pessoal que mora nas ilhas, estes perderam tudo".
Cena 5: Assisto no jornal da noite, na televisão, policiais perseguindo suspeitos. Lembro-me de cenas recentes de outros policiais espancando professores e sindicalistas. Não faz muito, a manchete do dia era o parcelamento dos salários dos funcionários públicos estaduais.

Meus amigos, aliviados, dizem: "- Graças a Deus és professora federal e não foste afetada".

Cena 6: Tomo conhecimento, através de uma manifestação dos técnico-administrativos do meu departamento na Universidade, que houve um caso de assédio moral contra um funcionário. Procuro saber detalhes, mas não descubro nada. O Diretor expede um comunicado afirmando que irá investigar o ocorrido. Não sei mais nada sobre o que
aconteceu.

Sem amigos por perto, penso, com indisfarçável alívio: "- Desta vez não foi comigo".

Não é necessário muito esforço intelectual para percebermos o que estas cinco cenas têm em comum: a violência, o consolo de que poderia ter sido bem pior e a sensação de alívio porque o pior não aconteceu comigo. Foi com o outro. O outro, com o qual me comparo e penso que estou melhor do que ele, portanto, não tenho do que me queixar, ao menos até que algo de pior aconteça comigo.

Christophe Dejours, em seu livro A Banalização da Injustiça Social, já falava sobre este mecanismo de defesa coletivo em relação ao mundo do trabalho. O autor observou que a existência dos desempregados serve de alerta aos empregados para que não se queixem de sua situação: tudo poderia ser ainda pior. Aceitem quaisquer condições laborais, há algo ainda mais terrível à espreita, sugerem as manchetes sobre o aumento dos índices de desemprego e
da precarização crescente das relações de trabalho.

Assim, vamos aceitando a violência, o assédio moral, a desigualdade social, a desvalorização da carreira de professor e a depreciação dos salários.

Já afirmei em outro artigo, “Assédio Moral em Empresas do Rio Grande do Sul: uma Análise em Processos Jurídicos” (em fase de submissão a periódico especializado), que o assédio moral pode ser analisado de diferentes ângulos.
Podemos pensá-lo do ponto de vista dos indivíduos perversos, que sentem prazer em humilhar seus semelhantes, em exercer o poder, e acreditam estarem se valorizando ao desvalorizar o outro.

Podemos pensar o assédio moral como um fenômeno organizacional, através do qual instituições perversas massacram seus membros, a fim de atingir suas metas a qualquer custo.

Podemos pensar que o assédio moral é resultado do conflito capital-trabalho e que, através deste tipo de violência, o capital obtém maior lucratividade.

Podemos pensar, finalmente, que o assédio moral é um fenômeno social, resultante da cultura individualista, narcisista e competitiva da sociedade ocidental no século XXI.

Vamos refletir sobre cada um destes pontos.

Existem indivíduos perversos na Universidade? Provavelmente sim, eles estão representados estatisticamente em todas as categorias profissionais. Entretanto, alguns indivíduos perversos não seriam capazes de explicar, isoladamente, o desconforto e o adoecimento dos professores na Universidade Pública.

O assédio moral é resultado de uma universidade perversa, que assedia a todos na busca por melhores indicadores? Nesta suposição, que resultados para a sociedade podem os professores obter sob o drama do assédio moral? O sofrimento leva a produzir mais? Dejours diz que é possível, até certo ponto, que o medo seja utilizado como motor da inteligência. Mas a tranquilidade e a confiança também são ótimas indutoras da produção intelectual. O que a Universidade está fazendo para proteger seus membros do assédio moral? Como os casos estão sendo denunciados, investigados, esclarecidos e encaminhados?

O assédio moral na universidade é fruto da relação capital/trabalho? Seria mais adequado afirmar da relação estado/trabalho e da relação estado/educação.

A universidade é fruto de uma sociedade individualista e narcisista? Sim, como os valores sociais não iriam influenciar as instituições públicas?

É preciso, primeiramente, admitir os fatos para depois poder enfrentá-los.

Fernanda Zanin, Luis Allan Künzle, Margarida Barreto e Roberto Heloani trouxeram uma análise interessante do assédio moral aos professores de universidades públicas no capítulo “Modificações Neoliberais na Universidade Pública Brasileira: Cenário Propício para o Assédio Moral no Trabalho”, do livro “Estado, Poder e Assédio : Relações de Trabalho na Administração Pública”, de José Antônio Peres Gediel, Eduardo Faria Silva, Fernanda Zanin e Lawrence
Estivalet de Mello (Organizadores), da Kairós Edições, recentemente lançado. Afirmam os autores que:

Ao longo das últimas décadas, o trabalho acadêmico sofreu mudanças significativas, adquirindo uma nova conformação. Erudição, universalidade, pesquisas longitudinais e com profundidade, cooperatividade, entre outras características foram substituídas por pesquisas focalizadas e fragmentadas, valorização da quantidade de publicações, criação de rankings e competitividade e individualismo entre colegas de trabalho. Este novo ambiente de trabalho
nas universidades públicas tem propiciado o aumento de casos de violência, entre eles o assédio moral.(p. 185)

Conforme os autores salientaram, hoje os professores são vistos como "produtivos" (os que publicam muito, em "boas" revistas) e os "improdutivos". Aos primeiros, prestígio e acesso a recursos. Aos últimos, o ostracismo. Assim, os critérios de concessão de financiamentos e de avaliação dos professores transformaram o modelo de gestão em solo fértil para o assédio moral.

Sandro Bergue, autor de Gestão Estratégica de Pessoas em Organizações Públicas, alertou-nos sobre a importação de mecanismos gerenciais da iniciativa privada para o setor público, sem as devidas adaptações, a partir dos preceitos da Nova Administração Pública defendida por Bresser Pereira e Fernando Henrique Cardoso.

Nesta perspectiva, os conceitos de produtividade, competência, competitividade, racionalidade e empregabilidade foram entranhados em um ambiente público e burocrático, sob a alegação de que é preciso fazer "o elefante dançar" (referindo-se ao peso da burocracia) e de que "os professores públicos podem ser mais eficientes".

Resultado da premissa de "fazer mais com menos", o número de alunos em sala de aula aumentou drasticamente, as condições de trabalho pioraram e os salários ficam cada vez mais achatados.

Como Zanin e os colegas observaram, hoje o professor é um empreendedor, que busca, através de iniciativas individuais, financiamentos para suas pesquisas e complementação salarial. Acontece que a maioria dos professores atua sob o regime de Dedicação Exclusiva.

Assim, é preciso obter recursos externos, mas não se pode fazê-lo dentro da legalidade, gerando mais conflitos e estresse. Citando novamente Dejours, temos o conflito entre o trabalho real e o trabalho prescrito.

Vivemos em um modelo de "fordismo acadêmico", segundo os autores, no qual todos são pressionados a produzir, dos bolsistas de iniciação científica aos estudantes de mestrado e doutorado.

Trabalhos finais de disciplinas de pós-graduação? Tese concluída? Isto rende dois ou três artiguinhos! Como resultado, quantidade em detrimento da qualidade. A especificidade do trabalho intelectual e do perfil de cada professor não é levada em conta.

Soma-se a isso, ainda de acordo com os autores, a "divulgação dos rankings de produtividade"; e de indicadores de eficácia e eficiência.

Estes rankings sempre me lembram do comércio varejista e seus cartazes de "funcionários do mês", expostos publicamente.

Alguém poderia pensar que não há assédio moral entre professores de uma universidade pública porque estes têm estabilidade, há isonomia salarial e são seus pares que gerem a universidade e os departamentos.

Entretanto, conforme apresenta Zanin e colaboradores, em diversas situações cotidianas se faz uso das estruturas de poder e das disfunções burocráticas como instrumentos de assédio moral. Tomo como exemplos a comunicação ineficiente, a hierarquia rígida e as regras engessadas, que se mostram como instrumentos privilegiados de assédio moral e comprovam a afirmação de Pires e Macêdo (2006, p. 14 apud Zanin e colaboradores, 2015, p.195) de que
“nas organizações públicas, são as relações de estima e os jogos de influência os verdadeiros indicadores de poder no Brasil”.

Assim, estresse, adoecimento, conflitos, falta de coleguismo e jogos de poder se tornaram parte do cotidiano dos professores de universidades públicas. É notável como a mudança de paradigmas da educação pública encontrou eco e acolhida em meio ao individualismo e à impotência dos docentes. A lógica do "winner" está colocada. Aos "loosers", entregue-se salas de aula deterioradas, disciplinas defasadas do curriculum e turmas lotadas, e não os deixem participar das decisões.

É a violência aceita e institucionalizada. E aí ouvimos: "Ao menos tu não podes ser demitido". E nos consolamos com "o colega que não publica há meses....", aquele a quem olhamos com uma certa piedade e, ao mesmo tempo, um temor de contágio. O colega que não publica perde, simbolicamente, sua cidadania.

O assédio moral institucionalizado nos tira o que temos de humano: a solidariedade, a capacidade de sentir empatia, de nos fortalecermos como grupo, de lutarmos contra a violência. Cidadãos contra cidadãos, professores contra professores.

Quem sofre com isso, além dos professores e de seus familiares? Obviamente os alunos, que assistem a tudo alheios ou temerosos. Os de graduação, buscam carreiras alternativas e pequenos empreendimentos para criar para si uma possibilidade de trabalho menos hostil; os pós-graduandos, procuram transitar nas esferas de poder, fazer alianças, cooperar com o orientador de forma acrítica e, acima de tudo, "produzir artiguinhos".

Outro dia me perguntaram por que eu andava com meus CDs favoritos no carro, se eu já havia sido roubada.
- Porque gosto de ouvi-los no carro - respondi - porque me acalmam no trânsito, porque fazem parte dos meus momentos de sossego.
- Mas e agora que foram roubados, vais continuar andando com CDs no carro?
- Vou - afirmei - não quero que a violência me tire a vontade de cantar e de ser levada pela música.
Também não quero que o assédio moral me tire a alegria de estar em sala de aula e de orientar meus alunos.
Não quero que a violência institucionalizada me deixe menos humana.

“É notável como a mudança de paradigmas da educação pública encontrou eco e acolhida em meio ao individualismo e à impotência dos docentes. A lógica do "winner" está colocada. Aos "loosers", entregue-se salas de aula deterioradas, disciplinas defasadas do curriculum e urmas lotadas, e não os deixem participar das decisões.”

"O assédio moral institucionalizado nos tira o que temos de humano: a solidariedade, a apacidade de sentir empatia, de nos fortalecermos como grupo, de lutarmos contra a violência. Cidadãos contra cidadãos, professores contra professores".

Outros colunistas