por Rualdo Menegat

Professor do Instituto de Geociências da UFRGS

Terça-feira, 12 de novembro de 2019

Confira artigo do professor do Instituto de Geociências, Membro do Foro Latino-Americano de Meio Ambiente - Cátedra Unesco para o Desenvolvimento Sustentável, Rualdo Menegat.

A Amazônia em chamas é uma imagem jamais pensada, nem sequer na literatura. Como poderia uma floresta tão úmida como essa ser consumida pelo fogo? Mas neste ano de 2019, tornou-se realidade: a imagem da Amazônia em chamas foi irradiada em milhões de telas de comunicação eletrônica no Brasil e no mundo. Os quase 40 mil focos de incêndio, claramente visíveis em imagens de satélite, formavam uma extensa faixa de fumaça e destruíram cerca de 9.000 km² de floresta. Em vez de rios atmosféricos de vapor de água, chegaram à cidade de São Paulo, também como nunca visto, rios de fuligem. Os fogos florestais naturais são incomuns na Amazônia, sendo 99% devido a ações humanas. Diz-se que são desnaturais e se devem preponderantemente ao desmatamento. Por isso, se houver programas de controle, eles podem diminuir. Mas nesse ano, o catastrófico incêndio resultou de uma clara política de desmantelamento dos sistemas de controle ambiental por parte do governo federal, em particular, nessa região. Inclui-se no pacote redução de verbas para a pesquisa e a manutenção de sistemas de controle, como o DETER, do INPE. Reconhecer que houve sucateamento dos órgãos ambientais antes do sinistro é um caminho importante para entendermos de uma vez por todas que sem políticas ambientais adequadas e eficientes chegamos à barbárie ambiental. 

A pressão sobre o pulmão do mundo de 5,5 milhões de km² tem aumentado enormemente. A corrida do gado, da soja e da mineração vem colocando abaixo milhares de hectares de floresta. A maior área mundial de fazendas de gado situa-se no arco de desmatamento da Amazônia abrangendo os estados do Pará, Mato Grosso e Rondônia. De fato, de agosto de 2017 a julho de 2018, por exemplo, houve derrube de 7.900 km² de floresta. Nessa região, a violência é moeda comum e já levou à morte dezenas de defensores da floresta e seus povos, entre os quais os conhecidos casos de Chico Mendes e Dorothy Stang. Ali, temos uma espécie de farwest à brasileira, uma terra que parece não ter lei. A ausência da lei leva a uma clara sucumbência dos sistemas naturais. No oeste dos Estados Unidos, por exemplo, houve no século XIX a dizimação do maior rebanho de grandes mamíferos, nada menos de 25 milhões de búfalos e, com eles, os índios do meio-oeste. Aqui, no farwest brasileiro, estamos vendo a dizimação da floresta, e com ela, da sua fauna e de seus povos.

A floresta cobrará alto preço pela sua derrubada. Ela é o destino da América do Sul. Se os andinos cortassem as montanhas pela metade – uma conjectura inexequível não apenas tecnologicamente, mas também culturalmente, pois eles amam os Andes – a América do Sul ficaria transtornada. Haveria uma mudança total do clima do continente e as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil tornar-se-iam muito secas, talvez como a região da Caatinga no Nordeste ou do semideserto da Patagônia. Ocorre que, na latitude amazônica, os Andes Centrais funcionam como uma enorme muralha que barra a umidade que provem do Atlântico evitando sua dispersão rumo ao Pacífico. Esse vapor de água atlântico soma-se com o da evapotranspiração da floresta e, ao chocar-se com os Andes, deriva para o sul, umedecendo uma vasta faixa que vai do Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e, ainda, as terras baixas do Peru, Bolívia, Argentina, Paraguai e Uruguai.  Se cortarmos a floresta – o que surpreendentemente não causa tanto espanto como seria cortar as montanhas pela metade – a umidade que rega a vida e a agricultura do centro sul do Brasil também desapareceria. 

A forma como a civilização brasileira tem se apropriado das matas é um passivo que teremos que superar se quisermos de fato proteger a Amazônia. Se olharmos o sul do Brasil até o Cerrado no centro oeste e se incluirmos o Pampa e o Chaco argentino-boliviano, toda essa região está se tornando um grande tabuleiro de criação de gado e de monocultura intensiva da soja. É a expansão desenfreada dessa forma de apropriação da terra que dizimou as matas do sul do Brasil, os ‘pastizales’ do Pampa-Chaco e pressiona, agora, a última fronteira: a Amazônia, como se ela fosse caput mortum.

A Amazônia ainda carrega a ideia de nosso mundo natural. Ela é também um repositório de nossa possível virtude civilizacional. Se a destruirmos, não teremos só a destruição da vida que ela carrega, mas da própria ideia do que é ser civilizado. Ocorre que a Amazônia entre seus segredos guarda os berços da biodiversidade e de uma quantidade impressionante de culturas humanas. À biodiversidade da Amazônia corresponde igual diversidade de formas humanas de viver na floresta. Cada cultura ali presente é uma enciclopédia de conhecimentos sobre a floresta que foi escrita e inscrita nesse ecossistema ao longo de milhares de anos. A Amazônia é um sistema agroflorestal.

Esse tapete florestal amazônico, o cobertor da terra, como os tikunas o chamam, gerou um espaço cognitivo único no planeta: pensar o mundo a partir de dentro da floresta. Há ali uma cognição humana própria, que gerou uma cultura capaz de conviver com a mata e não de destruí-la. Os colonizadores que vieram do Velho Mundo não têm sido capazes de conviver com a mata e, então, cortam-na sem deixar remanescente nem sequer nas margens dos rios. Mas as civilizações amazônicas antigas, que tanto tardamos em admiti-las, já foram capazes de desenvolver enormes ‘cidades’, como nos mostrou Charles Mann. Muitas delas tinham mais de 80 mil habitantes e eram capazes de conviver de forma sustentável dentro e com a floresta. A ideia de uma Amazônia intacta e virgem, para muitos improdutiva e inabitada, não tem suporte nas evidências arqueológicas e tem ajudado a destruir a mata. Ela alimenta a noção de que não há nada ali a não ser ‘mato’ – como se isso fosse pouco. Porém, antes de Colombo, a mata abrigava exuberantes sociedades capazes de viver em um ambiente que nos pareceria inviável para a ‘civilização’. Se pudéssemos aprender um pouco com as enciclopédias vivas dessas culturas que ainda habitam a Amazônia talvez venhamos a ter alguma chance de preservá-la. Se não o fizermos, o futuro próximo de nossos filhos e netos poderá ver tempestades e cenários que nossa literatura ficcional desconhece. Afinal, o gigantesco planeta Terra com seus 4,6 bilhões de anos guarda segredos que vão bem além de apenas uma soma de recursos naturais a serem explorados. A Terra, nossa casa comum, é um sistema dinâmico não apenas em termos dos processos geológicos, climáticos e ecológicos atualmente em curso, mas também de estoques de materiais. A floresta Amazônica, por exemplo, é uma região funcional na América do Sul. Ela é uma espécie de bomba biológica que promove os fluxos de vapor de água que se espargem sobre o sul do continente como rios aéreos. Seu tapete de folhas verdes produz grande quantidade de oxigênio.  Mas ela é também um enorme estoque de carbono, que foi retirado da atmosfera e está guardado em seus lenhos. A queima da floresta devolve esse carbono na forma de CO2, um gás de efeito estufa. 

A Amazônia é mais do que um pulmão do planeta, provedor de umidade que restringe a incidência de desertos na América do Sul em comparação com outros continentes. Ela é um estoque de carbono, ou seja, uma importante função que regula o clima atual da Terra. A arrasadora destruição que vem sendo feita, em altas taxas, pois é por meio do fogo, acelera todos os processos de degradação nas mais diversas escalas, regionais, continental e global. A essa escala de destruição da vida podemos, então, chamar de barbárie. Razão pela qual o mundo inteiro ficou em alerta sobre esse fato que retirou do Brasil a idílica imagem do país do samba, da bossa nova e do futebol. A dizimação da floresta, a remoção do cobertor da terra, expôs a face bárbara do Brasil ao mundo como nunca até então tínhamos presenciado no tempo recente.

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